terça-feira, 14 de julho de 2009

A doença da ignorância

por Rikardo Santana da Silva

Após mais de 20 anos da descoberta do vírus da Aids muitas pessoas ainda não se sentem potenciais vítimas da doença. Apesar de toda a informação disponível, adolescentes pensam que a doença não irá atingi-los e acabam correndo riscos desnecessários. Isto foi objeto de estudo da psicóloga Ana Carolina Ribeiro em sua monografia. No decorrer desta matéria você começará a entender por que isso acontece.

“Olha, por mais que digam que não tem nada a ver, que você só pega transando ou pelo sangue... eu tenho um certo receio de aidético. Sei lá, me vem à cabeça aquela idéia de contaminação mesmo, de que a pessoa tem uma coisa de sujeira, sabe?” (E7, 23 anos, masculino, heterossexual).

Esta afirmação foi feita no ano de 2006, em uma série de entrevistas feitas pela psicóloga Ana Carolina Ribeiro, em seu trabalho de conclusão de curso em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a monografia “Percepção de risco de infecção por HIV/Aids entre jovens”. Assim como o entrevistado, cuja identidade não foi revelada, muitas pessoas ainda têm um pensamento equivocado e preconceituoso quanto à Aids ou aos portadores do vírus HIV.

No Brasil, segundo dados do Programa das Nações Unidas para a Aids (Unaids, na sigla em inglês), existem cerca de 620 mil pessoas vivendo com o vírus HIV . Ainda segundo a Unaids, cerca de 33,2 milhões de pessoas vivem com o vírus no mundo, sendo que 2,5 milhões têm menos de 15 anos, e 2,1 milhões de pessoas morreram de Aids no último ano.

Nesta monografia, Ana Carolina tentou mostrar qual era a percepção dos jovens quanto à prevenção e a contaminação pelo vírus HIV. “A pesquisa revelou que as pessoas têm acesso à informação, mas não se protegem, pois não se consideram em um grupo de risco”. Para confirmar sua hipótese, Ana Carolina entrevistou 12 jovens de 18 a 25 anos, 6 homens e 6 mulheres.

Ana Carolina mostrou, através de seu estudo, que apesar de as pessoas terem conhecimento de como a doença pode ser contraída, elas o ignoram e correm o risco. “A pesquisa foi bem ao encontro com aquilo que a literatura falava. A percepção de risco não está associada ao conhecimento sobre a doença. Muitas vezes se imagina que as pessoas não tem acesso à informação e por isso não se protegem. A pesquisa mostrou que, na verdade, as pessoas se sentem invulneráveis, principalmente em relação ao sentimento amoroso”, constata a autora.

Mas como em pleno século XXI, na era da informação, pessoas ainda tenham pensamentos tão errados em relação a um assunto tão amplamente divulgado? Ou pior ainda, por que pessoas que têm acesso a essa informação e sabem dos riscos que podem correr, ignoram totalmente esse conhecimento e se arriscam mesmo assim? Foi a essas perguntas que este trabalho tentou responder e que você irá entender agora.

Formação da identidade

O período da adolescência é uma época de transição da infância para a vida adulta. Mas o que isso significa? Segundo a pesquisa de Ana Carolina, o adolescente tenta se encontrar no mundo, pois como ele não é mais criança, não pode mais agir como tal, e a sociedade começa a lhe cobrar mais responsabilidades. Mas como ainda não são adultos, essa mesma sociedade trata-os como sendo ainda irresponsável.

Para conseguirem ser aceitos em um grupo, os adolescentes começam a fazer escolhas que os façam serem mais próximos de determinado grupo, e a sexualidade é uma dela. O sexo começa a tomar um papel fundamental na vida destes jovens. Com isso, o sexo começa a se tornar não apenas parte da reprodução ou da busca pelo prazer, mas também se torna um dos elementos da busca pela identidade que o jovem irá formar e, a partir daí, mesmo sabendo que haverá riscos, ele os ignora, pois acha que com ele não irá ocorrer. “A aceitação no grupo torna difícil a prevenção para estes jovens de 15 á 24 anos, pois nesta época eles têm a sensação de invulnerabilidade, de que nada irá acontecer com ele”, conta Ana Carolina.

O mesmo comportamento ocorre com relação à gravidez ou a dirigir bêbado. O jovem sente que nada irá lhe ocorrer e por isso não precisa se prevenir. Além disso, existe a questão da fidelidade. Quando o jovem conhece seu parceiro, ele pensa que não há problema em fazer sexo sem proteção, pois tem a certeza que a pessoa não tem aquela doença.

Com isso, Ana Carolina mostra que é necessário conhecer o pensamento destes jovens quanto à prevenção para que as campanhas de prevenção realmente os atinjam. No livro “AIDS in the World II”, Jonathan Mann e Daniel Tarantola explicam muito bem isso, dizendo que é necessário o conhecimento do público para o qual a idéia será veiculada. “Se os preservativos precisam ser promovidos com sucesso como uma estratégia global para diminuir o risco de infecção por HIV, as maiores barreiras à sua utilização precisam ser compreendidas.”

Além disso, é preciso compreender o pensamento deste jovens quando a questão é a sexualidade. Conforme Ana Carolina aponta o sexo passa a ter um novo significado, em que os riscos são encarados de maneira diferente. “Tudo que está inserido na esfera da sexualidade está inserido na esfera do desejo, e aí fica muito difícil situar certas coisas, como o risco, pois está além. O prazer também envolve certo risco” afirma.

Segundo o estudo de Ana Carolina, a principal barreira para que o jovem não use o preservativo é a preocupação com a diminuição do prazer e novamente a confiança em seu parceiro. Esta confiança se dá porque o parceiro sexual do jovem é seu conhecido, é alguém que freqüenta os mesmos lugares, que pertence ao mesmo grupo. Ou seja, a AIDS é uma doença do outro, que não existe em seu círculo social. Este pensamento é outro fator que influi na percepção dos jovens quanto à prevenção e contaminação por HIV.

A doença do outro

No início da epidemia de Aids, a doença foi tratada como uma doença dos homossexuais. Alguns anos depois, pessoas que dependiam de transfusões de sangue ou pessoas que usavam drogas injetáveis começaram a entrar no chamado “grupo de risco”. Ou seja, desde o início a Aids é tratada como uma doença de um determinado grupo social, que já era alvo do preconceito.

Com o passar dos anos, a epidemia do HIV começou a atingir pessoas que não estavam no grupo de risco, e aí a culpa passou a ser dos portadores do vírus, que eram irresponsáveis e por isso contraíram a doença, caracterizando ainda mais a idéia da doença do outro. Esse pensamento de que “comigo nunca irá acontecer” faz com que jovens se exponham aos riscos, pois tem certeza de que nada irá acontecer com ele.

As primeiras pessoas a serem enquadradas no “grupo de risco” foram os homossexuais. Por serem os primeiros, hoje o número de pessoas pertencentes a esse grupo que usam preservativos é maior que o de heterossexuais. Por atuar em uma organização não-governamental que trabalha com os direitos dos gays, lésbicas, bi-sexuais e transexuais, Ana Carolina percebeu que a percepção deste grupo social em relação ao HIV era diferente.

A criação deste “grupo de risco” fez com que as pessoas se despreocupassem com a doença, pois ela só acontecia com quem fazia parte daquele grupo. Este pensamento fez com que não houvesse o preocupação em se prevenir por parte de pessoas fora deste grupo, fazendo aumentar os casos de infecção.

Mesmo após vinte anos de estudos e divulgação sobre a doença, as pessoas ainda têm estereótipos criados sobre a doença, como o entrevistado do início da matéria, que pensa que o portador do vírus é sujo. Mas as entrevistas mostraram que nem todos são assim, como você pode perceber nas frases destacadas nesta reportagem.

Outra questão a ser levantada a respeito da doença do outro é sobre a fidelidade. Quando o jovem conhece a pessoa, ele simplesmente não acha necessário o uso de preservativo, pois confia nela. Quanto a isso também existe uma diferença quanto a gênero. Segundo a monografia de Ana Carolina, enquanto o homem, em sua construção social de identidade é visto, sexualmente falando, como independente, viril, conquistador, forte e seguro, a mulher é tida como carinhosa, sensual e sedutora, mas tomando cuidado para que esse comportamento não seja muito explícito e a faça parecer vulgar.

Neste ponto aparece mais uma resposta às perguntas propostas: a vulnerabilidade feminina. Por não poder expor sua sexualidade, pois será taxada de vulgar, a mulher acaba sendo subjugada pelo homem. A construção do que é ser homem é associada a idéia de gostar do sexo, enquanto á mulher cabe o papel de ser mãe e esposa fiel. Mas como isso influi na percepção de risco?

Vulnerabilidade feminina

A camisinha, método mais eficaz de prevenção da Aids, é de uso masculino. Este fato faz com que a mulher seja “refém” da vontade do homem em usar este método de prevenção sendo necessária uma negociação para que o homem use. E quando é proposto o uso para o homem, ele se sente ofendido pela mulher não confiar nele, ou acha que a parceira é promiscua.

Como já foi dito antes, os grupos de riscos para se contrair o HIV eram bem claros: Homens gays ou mulheres prostitutas. Esta certeza, fez com que as mulheres não se enxergassem como potencial vítima da doença, a não ser que fosse garota de programa ou que seu marido a traísse e não usasse camisinha. “A mulher por ‘n’ fatores está mais vulnerável ao vírus principalmente por não se sentir nesse grupo de risco” conta Ana Carolina.

Mas, o vírus chegou às mulheres e a partir daí o número de infectadas só aumentou. Para se ter uma idéia, de acordo com os dados da Monitoraids, ligado ao Programa Nacional de DST e Aids do Governo Federal, de 1980 a 1995, foram notificados mais de 21 mil casos de HIV em mulheres, ou seja, cerca de 1401 por ano. Só em 2005, foram mais de 14 mil notificações, quase 11 vezes mais. Apesar de o número de homens com o vírus ter aumentado de 1996 até 2005, se formos comparar com o mesmo período, veremos que o aumento feminino foi maior. Ainda segundo o Monitoraids, de 1980 á 1995, mais de 85 mil homens foram diagnosticados como portadores do vírus, cerca de 5673 por ano, enquanto que em 2005 foram mais de 20 mil, “apenas” cerca de 4 vezes mais. Apesar disso, o número de casos nos últimos anos vem caindo, tanto para homens quanto para mulheres, mas este crescimento mostra que as mulheres passaram a ser também vítimas da epidemia.

Por que o número de mulheres com HIV aumentou tanto durante os anos, em comparação ao número de homens? A resposta pode estar justamente nessa vulnerabilidade que na adolescência, ao se juntar com a construção da identidade e com o estereótipo d e “doença do outro”, faz com que a mulher se exponha mais ao risco, por confiar demais no parceiro ou por achar que o uso do preservativo depende da vontade do homem.

A autora ainda mostra que as políticas públicas que atendem a mulher na questão sexual, tratam-na ou como uma mulher promíscua ou como uma mãe de família, mas nunca como alguém que simplesmente quer fazer sexo. “É preciso enxergar o papel sexual da mulher e dar opções de prevenção que estejam sob seu controle” afirma Ana Carolina. Esse tratamento dado à mulher, faz com que ela não se sinta parte do “grupo de risco” ao menos que ela seja uma prostituta, fazendo com que não se sinta ameaçada.

Qual é a saída?


Talvez o que melhor defina o trabalho feito pela autora seja o fato de que as pessoas ignoram o que sabem sobre HIV em detrimento de outras escolhas. O estudo mostrou que apesar de os jovens conhecerem os modos de transmissão da Aids e saberem que o sexo é uma das formas de contaminação, eles ignoram esse conhecimento. Isto faz com que os jovens, como foi descrito na monografia, que já se acham invulneráveis por natureza, não se protejam por achar que nada irá acontecer com eles.

Fazer com que as escolas ensinem a educação sexual de uma maneira séria, abordando o tema da forma como os adolescentes entendem a questão, dar á mulher a opção de prevenção própria e mostrar que o HIV não é uma “doença do outro”, mas que está presente em todos os meios pode ser uma saída para a questão abordada no estudo.

O conhecimento é essencial para saber que a Aids não se transmite ao se beijar ou ao tomar líquidos no mesmo copo que um portador do HIV, mas que é sim transmitido por via sexual, e que a prevenção é o melhor remédio. Além disso, é preciso fazer com que a sexualidade deixe de ser um tabu, pois como a autora mesmo diz, a grande dificuldade do trabalho foi achar os entrevistados. “Foi muito difícil encontrar pessoas dispostas a falar sobre isso, mesmo sendo depoimentos anônimos. Senti uma dificuldade maior em falar com os homens”, relata Ana.

Os homossexuais, como já foi dito, por terem medo de contraírem Aids, são o grupo que mais se previne contra o vírus. As demais pessoas ainda não têm esse medo como algo concreto e por isso não se sentem ameaçadas, mas Ana Carolina acredita que a fase do medo já passou. “Acho que agora é importante conscientizar da importância prevenção e de educar os jovens sexualmente”. Mas, como Shakespeare, citado pela própria autora, disse “a melhor segurança repousa no medo.”

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