quinta-feira, 16 de julho de 2009

A negação do problema

Desde a implementação das cotas raciais nas universidades federais, várias dúvidas surgiram sobre a necessidade das mesmas e muitos
argumentos foram colocados, muitos deles sem nenhum fundamento ou relevância. Para ajudar nesta questão, um projeto está sendo feito na UFPR com o intuito de mostrar a realidade da situação dos cotistas e para mostrar que o preconceito existe na vida destas pessoas.


por Rikardo Santana da Silva

No ano de 2005, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) instituiu o sistema de cotas raciais na instituição. O fato foi considerado por muitos como discriminatório como algo que fere o princípio da meritocracia ou que era um racismo que poderia instituir um apartheid no Brasil. Do outro lado, os defensores mostraram que a representatividade do negro na UFPR era mínima, muito abaixo do percentual da população e que a formação superior beneficiava apenas uma parcela da sociedade.

No meio de toda essa discussão se esqueceram do fator principal: o ser humano. Ninguém se perguntou como os cotistas se sentiam a respeito da situação que estavam vivendo e muito menos sua condição como negro no Brasil ou em Curitiba. O mito da “democracia racial” impera nas discussões como se nosso país fosse livre desse mal.

Por considerar estes argumentos muito superficiais e pouco conclusivos para um tema tão complexo e para mostrar um pouco o que é ser negro na cidade, o professor doutor Marcos Silva da Silveira está desenvolvendo um trabalho de extensão na UFPR em que, com a colaboração de 5 alunos, irá desenvolver, no curso de “Educação Étnico-Racial para Cotistas Raciais e Licenciados”, a cartilha “Memórias dos cotistas raciais da UFPR” destinada a alunos e professores do ensino médio, em que irá mostrar as experiências vividas pelos alunos.

Para produzir esta cartilha, os alunos se reúnem com o professor em reuniões na universidade, para aprenderem um pouco sobre as relações étnico-raciais da sociedade brasileira, e para que eles mostrem como ocorrem estas relações no cotidiano deles. Por perceber que os cotistas raciais da UFPR têm uma série de dúvidas a respeito da implementação das cotas, do racismo e do que a sociedade espera deles, este curso de extensão foi proposto para eles.

O projeto é desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) da UFPR e tem como objetivo mostrar de que maneira a política de cotas é vivenciada pelos próprios estudantes cotistas. Participam da oficina não só estudantes cotistas, mas também não-cotistas que estejam interessados, tentando mostrar o que mudou na vida destes estudantes, na sociedade e na universidade desde a implementação das cotas raciais, será a memória dos negros que se tornaram cotistas e suas percepções quanto a isso.

Silveira coloca que iniciou esta pesquisa a partir de uma pesquisa desenvolvida no curso de antropologia em 2005, sobre racismo. A partir dessa pesquisa houve um levantamento sobre o que as pessoas pensavam sobre as cotas raciais. Os resultados obtidos foram que a maioria das pessoas se posicionava a favor da idéia de cotas sociais, de alunos oriundos de escolas públicas, mas contrárias a idéia de cotas raciais.

Os argumentos usados pelas pessoas contrárias eram baseados em estereótipos criados pela mídia e sustentados por muitos discursos equivocados vindos das academias. A discussão não era aprofundada, além de que o perfil dos entrevistados, que era geralmente de classe médio alta pouco contato tinha com pessoas negras. Silveira então decidiu registrar as memórias destes cotistas “Eu achei que seria interessante porque nós sabemos muito pouco sobre os cotistas raciais”, constata.

A realidade dos cotistas

A partir da execução do projeto e da descrição das experiências dos cotistas, foi visto que a discussão sobre o tema, quando acontecia, ocorria de uma maneira superficial e com argumentos vindos do senso comum que desconsideravam a realidade dos fatos. O que foi constatado a partir disso foi que mesmo quando existia uma discussão mais profunda sobre o tema, ela não era verdadeira, pois as pessoas não falavam a verdade, o que podia ser provado com os relatos dos cotistas que contaram suas impressões das conversas fora de sala.

Jules Ventura é aluno do quarto ano do curso de Ciências Sociais e fez parte do primeiro grupo de cotistas raciais a entrar na UFPR. O estudante conta que quis participar do projeto por acreditar que a discussão não estava sendo levada á sério.“Tento trazer minha história de vida, da escolha de ser cotista. As pessoas geralmente fogem do problema ou tratam isso como se fosse simples, e não é, pois trata-se da vida de pessoas. Minha vida está sendo debatida”, desabafa.

Esta banalização no tratamento do tema levou ao desenvolvimento desta pesquisa, para mostrar não apenas os dados da desigualdade e do racismo, mas histórias sobre isso, contadas por aqueles que a sofreram ou que presenciaram, como o aluno do terceiro ano do curso de Ciências Sociais, André Marega. Ele percebeu que se falava algo e era feito outro. “Não batia o que se falava com o que se fazia. Eu nunca senti na pele, mas vi pessoas reproduzir esse racismo e de alguma maneira achei que esta divulgação das memórias daria um bom material de reflexão”, revela.

Se quando há a discussão já é um problema, pois, de acordo com a pesquisa e seus envolvidos, argumentos pouco aprofundados e visões que não correspondem necessariamente a realidade imperam, imagine então quando não há discussão nenhuma. Edvando Eduardo Gomes é aluno do quarto ano do curso de Engenharia Civil (um dos dois únicos negros numa turma de 150 estudantes) e diz que a palavra cotas ou racismo é um tabu em sua sala. “O meu curso é extremamente elitista e eu percebia um tratamento diferente vindo de outros colegas e até de professores, por eu ser cotista racial. Não se pode discutir o assunto na sala. Mesmo quando tento, o assunto é rapidamente abafado, criando uma tensão entre a turma. É necessário discutir para o clima ficar menos denso. Eu quero poder de alguma maneira levantar a discussão e fazer esse tema ser debate”, conclui.

A participação no curso também foi feita a partir da própria curiosidade do estudante, pelo menos foi o caso de Áurea Teixeira que diz que se interessou pelo projeto porque queria conhecer um pouco sua composição étnica. “Eu não conseguia entender minha composição étnico-racial e com todas as manifestações que ocorreram com a instauração das cotas eu procurei entender melhor a situação, entender o outro, porque eu não me sentia negra, é muito importante pra mim a participação nesse projeto. Comecei a entender mais profundamente esta situação, entender a experiência do outro”, define.

A quinta participante, Julia Conceição, já era, antes de entrar na UFPR, participante ativa de debates sobre questões raciais. “O projeto vem só somar com aquilo que acredito. É uma oportunidade de eu como negra poder participar, colocar minha subjetividade dentro desse espaço. A temática que estou discutindo é que nós não estamos falando de segmentos fechados e sim de seres humanos. As sensações que tive na vida me fizeram entrar nestes debates que tem discussão racial”, conta.

Julia ainda conta que as dificuldades do negro no Brasil não são apenas do acesso ao ensino superior, mas também de se ver como um cidadão e encontrar seu espaço na história. “As representações tem muito peso. Como a representação no nosso país fica nesse mito da democracia racial isso faz com que as pessoas pensem que de fato isso existe na prática. Os negros têm muita dificuldade de encontra suas raízes, pois elas foram muito pulverizadas. Todos sabem se são descendentes de alemão, japonês e italiano, mas aqui no país a ancestralidade negra fica colada na figura do escravo”, analisa Julia.

Como este projeto ainda esta em andamento, ainda tem tempo para saber se ele de fato irá gerar os resultados que seus participantes esperam. Mas o que de fato eles esperam? O que eles querem, e o que também Silveira quer, é que o debate seja de faro levado a sério e que passemos a nos interessar em entender o outro lado, mas isso é assunto para o próximo tópico.

Expectativas

Ao fim desse semestre será desenvolvida a primeira cartilha com as memórias dos cotistas, com a proposta de ser lançado um álbum com estas memórias com o título de “Memórias Étnico-Raciais dos Estudantes da UFPR”. Ao final disso, tanto Silveira quanto seu grupo de estudantes, esperam melhorar a condição do debate, fazê-lo ser mais fundamentado.

“O objetivo da pesquisa não é, de maneira nenhuma, obrigar as pessoas a aceitarem seus argumentos, mas sim mostrar que a discussão que atualmente acontece não é conduzida de maneira séria, pois não é levado em conta que se está falando da vida de pessoas e não de algo abstrato. Além de que o aprofundamento, a divulgação e a importância devida, não são dados ao tema” constata o pesquisador.

Silveira acredita que estas histórias podem mostrar às pessoas um lado mais humano e mais sólido das desigualdades. “As pessoas vão ouvir histórias das quais elas não têm acesso. O nosso papel é entender o problema. Mostrar essas histórias irá expor o que acontece na sociedade. As pessoas terão acesso a outro discurso, a novos elementos”, define.

Jules Ventura espera que a forma banal que o tema é tratado seja modificada. “Todo mundo tem alguma coisa á dizer, mas elas são viciadas. É preciso que haja uma melhor reflexão”. André também espera melhorar o debate. “O que a gente tem percebido com nossa pesquisa é a idéia de que esses argumentos devem ser aprofundados e não ser pensados no mesmo círculo de argumentos”. Edvando quer debater em sua sala. “Espero que a partir disso eu possa colocar debater no meu curso, pois apesar de não ter a ver com tecnologia tem a ver com pessoas, e são as pessoas que fazem a tecnologia”. Áurea acredita que a partir disto, a sociedade possa entender melhor a questão. “É preciso entender o outro saber de suas dificuldades, ou seja, conhecer nossa realidade”. Já Júlia quer que a questão seja superada porque hoje “a gente tem que provar primeiro que temos condição de sermos acadêmicos para depois termos condição de sermos o que quisermos”, finaliza.

O que o projeto pretende é redefinir os padrões de como a questão é tratada, pois, por muitas vezes as questões postas como argumentos para a contrariedade das cotas, levam a um pensamento de que a igualdade impera no Brasil, fato que é facilmente derrubado com uma simples ida a uma favela de uma grande cidade ou a uma universidade, como Jules coloca “muitas pessoas perguntam se a pobreza tem cor, quando a pergunta certa a fazer é se a riqueza tem”.

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